VARIAÇÕES SOBRE A MORTE

MIGUEL REALE

Depois que Nuce me deixou sozinho em nossa longa/breve história de amor, o mundo passou a ter outro sentido, ficando martelando em meus ouvidos a recordação dos versos de Giacomo Leopardi:

"....a un tempo stesso
Amore e Morte
Ingenerò la sorte".*

Acrescenta o poeta que o primeiro efeito da perda de um ente, que verdadeira e profundamente se amou, é o desejo de morrer. Em verdade, a primeira vontade é a do reencontro que somente a morte possibilita, resultando dessa aspiração a crença ou o reforço da crença na imortalidade da alma.

O paradoxo da existência humana é que nada é tão certo quanto a morte, sobre cujo significado, no entanto, reina a incerteza, a começar pela afirmação de que ela representaria apenas um fim material inevitável. Norberto Bobbio, com cujas idéias tantas vezes coincido, pertence à espécie infeliz dos

homens para os quais, após a morte, não há senão il buio, a escuridão. Creio, ao contrário, - e é o amor a fonte primordial dessa crença, vencedora de todas as perplexidades racionais – creio que a alma se desprende do corpo e passa para outra forma de existir, isenta de materialidade e, como tal, mais pura.

Dir-se-á que se trata de mera conjetura, mas esta é também uma forma de verdade, a que nos resta quando falham as tentativas da razão para explicar os fatos com base no esplêndido leque de sua metodologia. Se até no domínio das ciências exatas admite-se, hoje em dia, que sobre certos problemas fundamentais somente pode haver meras conjeturas, que dizer do magno problema da morte?

O segundo efeito da morte de uma pessoa querida é deixar de vê-la como um dano irreparável, uma ameaça que pesa sobre todas as criaturas. Nada como a perda de um ente querido para reconciliarmo-nos com a morte, deixando-se de temê-la para serenamente esperá-la a fim de restabelecer-se o elo partido. Não que o desaparecimento corpóreo possa pôr termo ao vínculo de um amor que dia a dia veio aprofundando suas raízes, mas é o corpo, que perdura, o obstáculo a atingir a verdade última, para a qual a razão não consegue dar respostas válidas. Mas, insuficiente a razão, sobrevem a fé pelas vias do amor.

A morte não representa, portanto, o termo final da pessoa que nos deixou, pois de sua memória emerge a obrigação de viver como se ela ainda estivesse presente, substituindo-a por inteiro. Essa é a herança mais alta, a única que tem valor real. A morte é, assim, um comando de amor aos que sobrevivem, uma exigência para que se dê continuidade àquilo que antes se fazia, ao trabalho que não pode nem deve ser interrompido. Amoroso trabalho que torna, então, binada a nossa ocupação, como se dois passassem a trabalhar, um a inspirar e o outro a fazer.

Quando quem morre se despede de uma família, na qual era o centro de referência e de cuidados, pode-se dizer, em suma, que se herda o amor familial como um acréscimo do ser. O desolado amante sente, então, imperiosa necessidade de amar, de maneira diversa e mais profunda, filhos, netos e bisnetos, com o ardor devotado àquela que foi chamada a outra vida. Sim, porque a primeira conseqüência da morte é, repito, robustecer-nos a crença em um ente que subsiste em uma duração pura, que é a forma humana da eternidade divina, outra conjetura a juntar-se ao nosso mar de conjeturas.

Por outro lado, a morte, que constitui uma fratura na teia de nossos sentimentos, ensina-nos a ver o mundo com outros olhos. Aprende-se a viver com lágrimas nos olhos quando menos se espera, ao acontecer algo, por ínfimo que seja, capaz de suscitar uma lembrança. Surge uma vida substancialmente dupla, uma perdida nas preocupações da existência quotidiana, outra presa a uma visão transcendental, no qual só têm sentido os valores essenciais, a espera a todo instante convertida em esperança.

Não é exagero afirmar que sem a morte não teria significação a vida. Imagine-se o homem imortal, para quem infância, juventude, maturidade e velhice seriam palavras desprovidas de sentido, um tempo sempre igual, no qual não haveria lugar nem para a esperança, nem para a saudade.

A temporalidade existencial tem por si mesma um sentido de provisoriedade, o outro lado de nossa finitude, constiuindo-se um liame essencial entre a duração e o sentido da vida, o que tem sido bem percebido pelos filósofos da saudade, a palavra que misteriosamente engloba o passado e o futuro. Sentir saudade de um ente amado é uma forma de ressuscitá-lo, de fazê-lo presente em nossos empenhos quotidianos.9

Se o destino, no dizer do mais merencório dos vates, acima invocado, gera, a um só tempo Amor e Morte, não é menos verdade que o amor faz perdurar a imagem ou a figura de quem cerrou para sempre os olhos, inserindo-a no âmago da consciência de quem saudosamente a recorda. Se não descesse sobre meus olhos a luz da fé, na certeza de um futuro reencontro, já bastaria o liame da saudade para endourar de espiritualidade o inexorável fato da morte, libertando-a da escuridão.

Embora possa parecer pretensão absurda, talvez se pudesse proclamar: "felizes os que amam, que deles é o reino da morte".

Foi talvez por isso que, ao pé da sepultura de Nuce, senti o invencível impulso de declarar, como numa prece, o que depois compus nestes versos:

"Não mais porás teus olhos em meus olhos

Mas nos veremos pelo tempo afora

Pelos olhos de nosso eterno amor".

"Estado de S.Paulo" – 12/06/99